Cuidado, contágio eminente! Cultura, comunidade e imunização, por Mutti Kirinus
Roberto Esposito dentro da corrente filosófica que tem como tema a comunidade percebe brilhantemente a essência da mesma. Ele se apoia na raiz ‘múnus’ presente na palavra comunidade. Este múnus podemos traduzir por um ‘menos’, uma ‘falta’, uma ‘dívida’, algo que se subtrai, ou ainda, um ‘vazio’. A essência de uma comunidade não é o fato de seus participantes terem algo em comum, nem residirem em um mesmo local. Mas anterior a isto uma abertura, um vazio proporcionado pela subtração da minha individualidade. Este é o tema do seu capítulo, ‘Nada em Comum’, que poderíamos chamar de ‘O Nada em Comum’, ou explica-lo ainda como o ‘nada’, o ‘vazio’, a possibilidade de uma abertura, é o que temos e o que torna possível o comum.
A pergunta que se repete constantemente é: como em plena era da comunicação há um aumento crescente do individualismo? O fato é que pecamos pelo excesso. Walter Benjamin já havia apontado que o excesso e predomínio da informação sobre outros modos de comunicação prejudicava uma experiência mais plena e verdadeira. Está provado cientificamente que uma criança com número excessivo de brinquedos torna-se uma criança estressada e, consequentemente, de difícil convivência social. Falta-nos a oportunidade de reconhecer e viver esta abertura necessária para o comum, falta-nos o vazio. Uma pessoa que tudo sabe não se abre para novos conhecimentos; qualquer diálogo só é possível devido a vazios constitutivos em forma de silêncios; para tomar conhecimento de um problema alheio é preciso se abrir em escuta silenciosa e atenta; qualquer ação depende da liberdade sobre o espaço aberto das possibilidades; o vazio do côncavo acolhe, o pleno do convexo dispersa.
Concluindo que a essência da comunidade é um vazio, um espaço aberto onde pode-se reconhecer e construir com o outro, o contrário de comunidade, é a imunidade, a ausência deste espaço. A sociedade moderna segundo Esposito foi a forma política mais capaz de gerar a imunidade, cuja característica do individualismo é apenas uma consequência. Através do contrato social onde em troca de proteção devo obediência ao Estado, e dos inúmeros contratos de trabalho decorrentes deste primeiro acordo tácito, estou isento de qualquer relação com o meu próximo sempre que bato o meu cartão ponto e cumpro minha obrigação de cidadão trabalhador. Somos todos, independente do segmento de trabalho, como a imagem do Chaplin apertando parafusos em ‘Tempos Modernos’. Até mesmo a arte que tinha este valor antropológico de abertura e comunhão, com uma proclamação de independência e liberdade no grito da ‘arte pela arte’, veio com ela também a transformação em mais uma setorização.
Quanto maior o centro urbano, quantidade de pessoas, contratos e relações de trabalho, maior o poder de imunização social. Através desta imunização trabalhamos compartimentalizados e estamos desobrigados até de dar bom dia ao nosso vizinho. Uma imagem recorrente nos filmes é uma pessoa do interior tentar cumprimentar um a um os transeuntes de uma multidão quando chega em um grande centro. Longe de um tratamento intensivo de imunização esta pessoa de um modo de vida mais simples não consegue não viver e deixar de reconhecer esta abertura para o outro. É claro que esta abertura contém um risco, ela pode se tornar um abismo onde o indivíduo pode se perder. É natural e necessária a preservação da individualidade para a própria sobrevivência. Nossa sociedade, segundo Esposito, progrediu imensa e inconscientemente na capacidade de imunização do contágio do outro.
Ora, uma abertura para o mundo, para o outro, para o espaço e tempo, levado ao último grau é o que podemos também chamar de ‘vida’. O caso agora não é de trocar a vida pela sua cópia através da tecnologia da informação, mas é que abrimos mão da própria vida no contrato social, por isto nos tornamos individualistas. Por conta disto aumenta ainda mais nossa responsabilidade sobre nosso ‘tempo livre’ e de saber que podemos cumprir o contrato, necessário para a sobrevivência, sem deixar de reconhecer o outro e que a cada momento ainda somos responsáveis por cada uma de nossas escolhas. Investir o tempo livre em ações que possuem esta abertura, vivências comunitárias e sociais, contemplação estética e artística conjunta e presencial, é um remédio contra a imunização. Colocar em nossas escolhas a presença do outro, do seu ponto de vista possível ou real, através de uma abertura primeira, também. É necessário mais do que nunca expor-se ao contágio! Sem mais, deixo apenas a abertura desta reflexão e um vazio, para sua possível continuidade através de sua participação em comentários e compartilhamentos.
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