Sonho meu, sonho seu, por Mutti Kirinus

Mutti principalComo afirmamos anteriormente, precisamos desviar dos obstáculos que dificultam o trabalho com a cultura. Para isso, precisamos reconhecê-los. Quem acompanhou a coluna do primeiro artigo até aqui, já pode reconhecer o uso muitas vezes incorreto dos diversos significados da palavra ‘cultura’. Pode reconhecer a diferença entre cultura popular e cultura de massa. Os benefícios e malefícios da reprodutibilidade técnica e do uso do poder de comunicação em nossos dias. O individualismo e imediatismo presente. O distanciamento da arte da religião, da natureza, dos objetivos sociais e sua transformação em um mero produto de consumo. Etc. Todos esses obstáculos dificultam o trabalho com a cultura e desembocam no que Adorno chamou de falência da cultura. Diz o filósofo que ‘a cultura que por sua própria natureza promete muitas coisas, não cumpriu suas promessas.’ E o não cumprimento destas promessas de paz, liberdade, igualdade, fraternidade, etc… presentes no conceito de cultura gerou uma raiva contra esta própria promessa e, por derivação, contra a própria cultura. Prova disto são as recentes postagens nas redes sociais mostrando um desejo de parte da população na extinção do Ministério da Cultura. Soma-se a elas também mensagens onde artistas de grande legado para a história do país e, por consequência, isso se aplicaria a toda classe artística, são chamados de parasitas e vagabundos. O educador, outro trabalhador cultural, há algumas décadas, gozava de um prestígio social e, hoje, é visto somente como mais uma profissão. Isso desperta uma reflexão: qual é esta natureza da cultura a que Adorno se refere? Por que ela ‘promete muitas coisas’ e quais os motivos do não cumprimento de suas promessas?

No artigo ‘Antes dos aplausos’, definimos a arte como uma recordação da nossa capacidade (e necessidade) de admirarmo-nos com o mundo. No artigo ‘Melhor e Antes’ a definimos como uma promessa de felicidade que gerou frutos nos mais diversos períodos da nossa história. Como característica do ser humano ressaltamos o fato de não sermos ‘perfeitos mas perfectíveis’. O poeta Ferreira Gullar disse uma vez: ‘A arte existe porque a vida não basta!’ Enfim, mesmo difícil de definir, podemos perceber que ela tem metade da sua natureza ligada a uma utopia, é uma promessa, um sonho, uma realidade possível e desejável mas que está sempre para se cumprir. A outra metade é o trabalho de transformação desta promessa em um produto cultural que a represente, e assim, leve esta promessa para adiante. Sem a primeira metade ela é apenas um produto qualquer, comercial ou não, sem a segunda, apenas uma ilusão. Com certeza todos já sonhamos com soluções para acabar com a fome, a violência, melhorar a educação, a desigualdade social, etc. Mas porque então isto nunca se tornou realidade? Talvez seja da natureza dos sonhos viver na imaterialidade, e segundo o mesmo princípio da inércia do mundo material, a tendência é permanecer no seu estado fundamental.

Para retirá-lo deste estado, primeiramente, é preciso comunicá-lo, de preferência a alguém que tenha experiência ou conhecimento na área, somente através do outro, com a exposição em palavras, uma ideia começa a materializar-se. E não é mesmo assim? Para saber se não estamos sonhando temos de pedir a alguém para nos dar um beliscão. Ao ver um oásis ou uma assombração perguntamos ao outro se também está vendo o mesmo que você. Somente através do outro podemos ter certeza da realidade de algo.

No entanto, muitas vezes, as palavras na linguagem oral, que dependem apenas da memória, se vão com o vento. Para dar mais materialidade para uma ideia, é preciso escrevê-la. Assim se poderá voltar a cada ponto que foi falado no primeiro discurso, conjecturar hipóteses e arrumar soluções para possíveis problemas ou incoerências. Na lei Rouanet, por exemplo, o setor de admissibilidade cumpre este papel, questiona e orienta a viabilidade de uma proposta cultural, em seguida o encaminha para a análise técnica onde especialistas de cada área vão dar o seu parecer. Na lei Rouanet, já provamos em artigos anteriores (Imagem é Nada, Conteúdo é Tudo), que não há privilégio (resposta a mentira número 1). O índice de aprovação, com o sistema totalmente informatizado e auxílio dos funcionários do Minc e dos pareceristas nos apontamentos das possíveis falhas do projeto é de 83%. Esse percentual prova que não são só meia dúzia de projetos de artistas famosos ou ligados ao governo que conseguem aprovação.

O terceiro passo é transformar o que foi dito e escrito em realidade. Essa é a parte mais difícil. O sonho da mais simples melodia é materializar-se, virar som, para isso ela vai precisar contar com, no mínimo, oito anos de estudo (seja ele formal, informal ou autodidata) de um cantor ou instrumentista. Caso se trate de um arranjo multiplique este número pelo de cantores e instrumentistas necessários. Esse estudo depende também de profissionais, tempo e capital.

Ou seja, para realizar uma ideia, é necessário buscar os recursos materiais e humanos para sua realização. Aqui, devido aos obstáculos que mencionamos, estamos em um sólido árido, e é onde muitos bons projetos não chegam a tornar-se realidade. O índice dos projetos apresentados que conseguem a captação de recurso é de 38%. Vale lembrar que grande parte desses não conseguem 100% do valor total de captação, o que resulta em um cumprimento parcial do objeto ou devolução do valor captado. Já esclarecemos o mito de que somente artistas famosos conseguem captação. Não é verdade, (resposta a mentira número 3 do artigo anterior) tem muitos artistas renomados que também não captam (como por exemplo Letícia Sabatella, os Detonautas, Claudia Leitte). Percebo que existe muita mágoa a respeito da lei Rouanet pela frustração presente nesta realidade. É realmente muito frustrante e traumático ter um bom projeto arquivado por falta de patrocínio, posso dizê-lo por experiência própria. No entanto, essa mágoa deve ser dirigida não a lei em si (que pode ser constantemente aperfeiçoada, é claro), mas a sociedade civil, e é mais um motivo para tentar mudar essa sociedade. A falta de sensibilidade para a cultura prova que precisamos de mais e mais cultura. O número de empresas que declaram imposto de renda com base no lucro real e que investem nas leis de incentivo e podem, assim, cumprir a denominada responsabilidade social, (sem gastar nada, diga-se de passagem) está muito aquém do esperado. A porcentagem de pessoas físicas que poderiam investir 6% do seu imposto de renda em projetos culturais e realmente o fazem é muito pequena, segundo os dados do próprio Ministério.

É importante ressaltar que o benefício mais importante que se obtém com esses investimentos não é a promoção da marca da empresa ou da pessoa, o que a lei até permite. O maior benefício está no que chamamos de lucro social, ou seja, menos desigualdade social, menos desemprego, menos violência, menos tráfico e uso de drogas, mais educação, mais saúde, mais solidariedade, mais cidadania, mais consciência política e consequentemente melhores administrações públicas.

Tudo o que exemplificamos através da produção cultural pode ser entendido também no âmbito individual. Como diz o ditado chinês: ‘se queres mudar seu país, mude sua cidade, se queres mudar sua cidade, mude sua casa, se queres mudar sua casa, mude a si mesmo.’ Todos sabemos como é fácil imaginar uma mudança de hábito mas o quanto é difícil praticá-la. Temos em cada um de nós o sonho de qualidade de vida, mas é muito difícil alcançá-lo. No âmbito das ideias e do discurso, ouço muitos elogios à cultura, a arte, a leitura, a música, ao esporte, etc, mas são poucas as pessoas que realmente investem nestas atividades.

Isso porque tanto os sonhos como a realidade possuem a sua inércia e tendem a permanecer no seu estado atual, parado ou de movimento. Se queremos mudar a realidade, movê-la ou dar-lhe nova direção, será preciso um trabalho constante e de todos. Através da arte, cultura e educação, precisamos lavrar e adubar o solo para que a semente desses projetos humanísticos caiam em solo fértil e não entre pedras e espinhos como já anunciava a antiga, mas sempre atual, parábola. É para isso que a utopia serve, ‘para caminhar’ como disse Eduardo Galeano, ou como já cantou D. Ivone Lara, ‘para buscar o que mora longe’. O sonho meu, o sonho seu, o sonho de todos, presente nas promessas desta palavra chamada ‘cultura’.

Mutti

Mutti

Helmuth A. Kirinus é mestre em Filosofia pela UFPR, formado em gestão cultural e músico. Atualmente coordena 8 projetos via lei Rouanet de incentivo à cultura e 4 via Sistema Municipal de Desenvolvimento da Cultura de Joinville. É professor de violão e coordenador da Escola de Música Tocando em Frente em Itapoá. Atua também como representante técnico do setor Comunicação e Cultura dos projetos do Ampliar pelo Porto Itapoá.

3 comentários em “Sonho meu, sonho seu, por Mutti Kirinus

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    15 de junho de 2016 em 11:47
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    Sonho meu, sonho seu, sonho nosso!
    Sonhar é preciso, o sonho sustentado no amor, gera esperança, sonhar é preciso!
    O sonho de Deus é o ser humano totalmente feliz. Ser humano é realizar o sonho de Deus em Cristo, tão humano ao extremo nos revelou o rosto divino feito misericórdia.

    o sonho da humanidade: um mundo melhor, com cultura e educação, menas manipulação é possível!
    Uma baita reflexão Mutti!
    Muito bom,
    enquanto isso: ” Tocando em frente!”

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    13 de junho de 2016 em 16:18
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    Gostei da relação da cultura como materialização dos sonhos. O sonho é o primeiro passo do homem de alcançar no imaginário o que pretende realizar. Primeiro se cria a cadeira no sonho, na imaginação, e depois se amolda a madeira com serrote, martelo, foice e machado até sair uma cadeira. E é o sonho de muitos que dão consistência a realização. Se ninguém tivesse sonhado como Santos Dumont de poder voar hoje não estaríamos navegando sobre nuvens. Mas infelizmente no sistema capitalista montado sobre a exploração do trabalho humano não convém ao homem trabalhador sonhar. Assim como a formiga na fabula de Le Founte está proibida de sonhar igual a cigarra. E passa a odiar a cigarra por causa da sua cultura e lhe nega o abrigo da sobrevivência quando chega o inverno. É a exaltação do trabalho escravo alienado culturalmente incompatível e por isto a condenação da arte como coisa de vagabundo. O antidoto a esta fabula está na obra de arte da escritora Gloria Kirinus em seu livro Formigarra Cigamiga.

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    11 de junho de 2016 em 13:25
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    Bem colocado. A gente sonha e diz muitas coisas bonitas sobre a cultura mas colocar em prática e insistir nisso no dia a dia é utopia ainda. Podemos ser bem mais eficientes nisso. E temos condições para isto. Basta querer e pôr a mão na massa!!!

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