“MAIO AMARELO: o acidente de trânsito mais marcante da minha vida”, por Marcus Ceschini

Vejo que a prevenção em acidentes de trânsito se tornou uma causa pessoal para mim, dada a complexidade, dificuldade e perigo inerentes às cenas que enfrentamos diariamente nos atendimentos do corpo de bombeiros.

Hoje, gostaria de compartilhar uma das ocorrências mais marcantes da minha carreira: um acidente de ônibus que aconteceu na descida da curva da Santa (BR376), que envolveu 52 vítimas.

Naquele dia, eu estava liderando uma equipe composta por seis bombeiros, divididos entre duas viaturas: o Auto Bomba Tanque Resgate e o Auto Socorro de Urgência. Recebemos o chamado por volta das 8h20 da manhã. Ao sermos acionados, uma tensão já tomava conta da equipe, cientes da fama de acidentes graves no local do acionamento e, por saber, que se tratava de um acidente de ônibus. Durante o deslocamento, revisei com os bombeiros os preceitos do método START, uma técnica de triagem essencial em situações de múltiplas vítimas.

Ao chegarmos, a cena caótica era comparável a um cenário de guerra. Um ônibus pendia perigosamente ao lado da ponte, algumas vítimas já haviam conseguido sair por conta própria. O médico e enfermeiro da ambulância da Autopista Litoral Sul (concessionária responsável pelo trecho), no local, já haviam organizado lonas de cor para triagem dos acidentados. Tudo bem impactante: dois socorristas já se encontravam lá, prestando atendimento às vítimas. Entretanto, estavam visivelmente envolvidos emocionalmente com o cenário presenciado e ainda não haviam iniciado o protocolo de triagem.

Na cena, havia cerca de 18 pessoas ejetadas ao redor do ônibus, sendo que dessas, cerca de metade já estava em óbito. Além disso, dentro do ônibus, contabilizavam-se também cerca de 20 pessoas, algumas das quais igualmente já em óbito e outras gravemente feridas.

Iniciamos o atendimento das vítimas nesse cenário que mais parecia um campo de batalha, permeado por gritos de dor e apelos por socorro.

Organizei a equipe de maneira estratégica. Designei três bombeiros para manusear as macas e demais equipamentos necessários para a imobilização das vítimas, dada a inclinação do terreno onde o ônibus se encontrava. O veículo foi parcialmente estabilizado, mas a situação ainda era precária. Dividi as tarefas entre mim, um soldado e bombeiro civil profissional, e os dois socorristas da Autopista.

Decidimos proceder com o atendimento individualizado, priorizando as vítimas conforme a gravidade de seus ferimentos, pois todas dentro da escala do método START, estavam na cor vermelha, que é de primeira prioridade. Para retirar as vítimas, uma a uma do local, foi necessário utilizar vários tirantes, dada à inclinação de aproximadamente 45 graus do terreno. Amarramos uma corda ao final da maca, permitindo que os socorristas acima puxassem a corda e nos auxiliassem na subida, garantindo maior estabilidade. A operação envolveu dois socorristas de cada lado ao final da maca, empregando todo o esforço da equipe, que incluía três membros da minha guarnição e dois da concessionária da rodovia. Assim, continuamos a resgatar as vítimas, uma a uma.

Durante o atendimento às vítimas, deparei-me com uma cena impactante: um bebê de apenas seis meses estava sem vida. Esse evento abalou profundamente toda a equipe de socorro, especialmente um dos socorristas que, recentemente, havia se tornado pai. Visivelmente perturbado ao visualizar o corpo do bebê, o impacto emocional foi imenso. Adicionalmente, um socorrista se aproximou de mim, transtornado, e relatou que havia, acidentalmente, pisado no corpo do bebê.

Diante dessa situação, decidi contrariar o protocolo habitual, que orienta que neste momento não sejam removidos corpos sem vida da cena do acidente. Com respeito e delicadeza, envolvi o corpo do bebê em uma manta térmica e o levei ainda intacto. Ele media aproximadamente 60 centímetros e estava completamente sem vida. Transportei o corpo até a área de triagem e o coloquei sobre uma lona preta, que é utilizada para indicar as vítimas que já faleceram. Esse foi um momento em que, diante da comoção geral e do impacto emocional evidente em dois membros cruciais da equipe, optei por quebrar o protocolo. A preservação do bem-estar emocional da minha equipe era essencial para a continuação efetiva do atendimento naquela ocorrência crítica.

Nesse dia, minha equipe realizou, antes de chegar recurso adicional na primeira hora de ocorrência, cerca de 10 a 15 pessoas. Sabe, a gente treina, se prepara para encarar de tudo, mas toda vez é como se fosse a primeira. Logo de cara, percebemos que seria uma ocorrência das grandes. Eram 52 vidas lá, esperando por nós, cada uma delas dependendo do nosso preparo, da nossa rapidez e da nossa capacidade de manter a cabeça no lugar mesmo com o caos ao redor.

No início, éramos só nós, seis resgatistas do Corpo de Bombeiros de Santa Catarina, lutando contra o tempo. Mas não demorou e começou a chegar ajuda. Bombeiros do Paraná, helicópteros subindo e descendo sem parar, aeronaves essas, dos bombeiros e polícia dos dois estados. As ambulâncias, nossa, nunca vi tantas juntas. Algumas eram de instituições públicas, mas sua maioria, privadas. Todo mundo querendo ajudar.

O médico que estava na ambulância da Autopista era muito bom. Ele coordenava e gerenciava o transporte das vítimas muito bem, decidindo quem ia pra qual hospital, fazendo milagres juntamente com  o enfermeiro para estabilizar os mais graves antes de enviar para Joinville, Curitiba (PR) ou Paranaguá (PR). A gente fazia o possível e o impossível pra salvar todos, mas algumas das vítimas estavam em situações que, só de lembrar, dá um aperto no peito.

No final das contas, perdemos 22 pessoas naquele dia. Isso nunca é fácil de engolir, porque a gente vai para cada ocorrência pensando em salvar todo mundo. Mas tem hora que a situação é maior do que qualquer preparação. Mesmo assim, a gente conseguiu tirar mais da metade das vítimas de lá com vida. São esses dias que nos lembram porque escolhemos vestir essa farda, sabe? A gente chora pelas perdas, mas celebra cada vida que consegue salvar.

Esse incidente foi um lembrete brutal da fragilidade humana e da importância da prevenção. Cada acidente que atendemos é um testemunho das vidas interrompidas abruptamente, de planos desfeitos e sonhos despedaçados. É um apelo doloroso para que todos reconheçam a seriedade de dirigir com responsabilidade.

A imprudência no trânsito não apenas coloca em risco a vida do motorista, mas também a de todos ao redor. Em nossa missão diária, vemos as consequências diretas dessas irresponsabilidades. Por isso, insisto na importância de dirigir com cautela, respeitar as leis de trânsito e valorizar cada vida.

Que essa narrativa sirva não apenas para compartilhar a realidade do trabalho dos resgatistas e socorristas, mas também para incentivar uma mudança consciente nas atitudes de cada um no trânsito.

Acidentes de trânsito são uma das principais causas de morte e lesões em todo o mundo, e grande parte desses acidentes poderia ser evitada. A imprudência está entre os principais culpados dessas tragédias diárias. Velocidade excessiva, não respeitar as leis de trânsito, dirigir sob o efeito de álcool ou drogas, e o uso de celular ao volante são comportamentos de risco que colocam não apenas o motorista, mas todos ao seu redor em perigo.

A prevenção é a chave para reduzir o número de acidentes e, consequentemente, o número de chamadas de emergência que bombeiros e socorristas precisam atender. Educação no trânsito, campanhas de conscientização, e infraestrutura de segurança viária são essenciais para criar um ambiente seguro. Quando a comunidade se envolve e cada indivíduo assume responsabilidade por suas ações, é possível criar um impacto significativo, tornando a população mais resiliente.

Os bombeiros e socorristas estarão sempre prontos para responder quando chamados, mas cada um de nós tem o poder de garantir que essas chamadas sejam cada vez menos frequentes. Respeitar as regras de trânsito, adotar comportamentos seguros ao volante e promover a educação no trânsito são formas de honrar o trabalho desses profissionais. Afinal, cada vida salva começa com um acidente evitado. Vamos juntos construir uma comunidade mais segura, reduzindo os riscos e protegendo vidas.

“Vidas alheias e riquezas a salvar”, esse é o lema do bombeiro militar, porém vidas e riquezas podem ser salvas com atitudes preventivas e conscientes da sociedade, sendo acionado o recurso de socorro somente quando o acidente realmente não pode ser evitado.

Marcus Ceschini

Marcus Ceschini

Marcus Ceschini é militar há dezoito anos. Serviu por aproximadamente seis anos na Força Aérea Brasileira e está completando 12 de carreira no Corpo de Bombeiro. Nos últimos cinco desses anos, assumiu a responsabilidade de chefe de socorro da Guarnição de Serviço Operacional.

2 comentários em ““MAIO AMARELO: o acidente de trânsito mais marcante da minha vida”, por Marcus Ceschini

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      19 de maio de 2024 em 16:23
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      Grande Marcus Cesquini,nosso colunista guerreiro!!
      Um grande bombeiro!

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