Santo de casa pode fazer milagre, por Werney Serafini

A África sempre me pareceu um lugar contraditório. Um enorme continente, primitivo, atrasado, degradado e, ao mesmo tempo, majestoso, repleto de animais magníficos, paisagens deslumbrantes, tema de documentários espetaculares.

Um filme reforçou a imagem que tinha da África: “Hotel Ruanda”, narrativa sobre os conflitos étnicos no país e as suas dramáticas consequências. Depois do filme, a África me pareceu “causa perdida”, por assim dizer.

No entanto, a leitura do livro “Produção de Natureza”, do biólogo conservacionista Ignacio Jiménez Pérez¹, proporcionou-me outro olhar, mais otimista e esperançoso. Não só sobre a Ruanda do filme, mas, também, sobre questões ambientais mundiais, notadamente no Brasil. Segundo narrativa de Jiménez, Ruanda é um pequeno país centro- africano, com solos férteis, chuvas abundantes, super povoado, mas com alto índice de pobreza. No final do século XX, sofreu um dos maiores genocídios de que se tem notícia, quando 1 milhão de pessoas morreram em razão de conflitos entre diferentes etnias.

Localizada em área de grande biodiversidade, tem amostras relevantes de florestas de planície e montanha, savanas e importantes zonas úmidas. A combinação da alta densidade populacional, pobreza e conflitos armados resultou na deterioração dos ecossistemas com impactos significativos nas áreas florestais conservadas e na rica fauna silvestre existente.

Jiménez foi a Ruanda em 2016,  com um grupo de conservacionistas e seu primeiro depoimento é surpreendente: “o que encontrei neste país dilacerado pela guerra foi uma das mensagens de otimismo mais poderosas em relação à convivência entre humanos e natureza, ou entre desenvolvimento e conservação, que se pode encontrar atualmente”.

Ao chegar, oficiais da alfandega confiscaram-lhe uma sacola, com a justificativa de que não era permitida a entrada  de plástico no país. Constatou depois que, apesar de ser um país pobre, praticamente não existia lixo e as pessoas não tinham o costume de jogar detritos no chão. Uma vez por mês, todos os cidadãos, inclusive o presidente, se reuniam em mutirões comunitários para recolher o que restou de lixo.

Ruanda levou a sério a questão da  reconstrução nacional, buscando evitar conflitos étnicos através de alternativas para que a população, principalmente a rural, reduzisse gradualmente a pobreza. Os governantes, segundo Jiménez, conseguiram estabelecer uma visão positiva e inspiradora para a maioria dos cidadãos no sentido de buscar energia e criatividade para a inserção no mundo globalizado do século XXI. A base foi o fortalecimento do turismo através do conceito da Produção de Natureza.

Ruanda é conhecida por abrigar a principal população de gorila-das-montanhas (Gorilla beringei beringei), que está classificada como em perigo de extinção pela UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza). A história dos gorilas mostra os perigos sofridos  pela fauna silvestre e, ao mesmo tempo, as oportunidades existentes para sua recuperação.

No final dos anos 70, os gorilas estavam condenados ao desaparecimento em razão da caça predatória e da supressão das florestas para expansão da agricultura. Em razão disso, um grupo de ONGs conservacionistas criou o Projeto Gorila das Montanhas, com ênfase em Ruanda. O programa demonstrou efetivamente que o turismo voltado a observação dos gorilas poderia resultar em benefícios para as comunidades do entorno do Parque Nacional dos Vulcões, que seria parcialmente desafetado para a expansão dos campos agrícolas.

O projeto dos gorilas foi interrompido com o genocídio de 1994 e outros, que inviabilizaram a vinda de turistas. Com a pacificação do país e o suporte governamental, a quantidade de visitantes no Parque Nacional dos Vulcões foi gradualmente crescendo, passando de 7.500 pessoas em 2003 para 28.000 em 2014. Da mesma forma, a quantidade de gorilas aumentou, independente do aumento das visitações por turistas.

Jiménez conta que quando esteve no parque, existiam dez grupos de gorilas habituados aos turistas. Cada grupo podia ser visitado, no máximo, por oito turistas ao dia e, durante uma hora apenas. A permissão para vê-los custava 759 dólares por pessoa e 85% das permissões disponíveis eram vendidas, proporcionando cerca de 17 milhões de dólares de receita, desses, 10% destinado as comunidades do entorno. As cifras não consideram outras receitas como diárias de guias rastreadores, venda de produtos e artesanatos, hospedagens e alimentação.

Um só hotel, fruto da parceria entre uma empresa estrangeira e a comunidade local, além de empregos, gerava cerca de 200 mil dólares anuais aos membros da comunidade, valor proveniente do pagamento de royalties de conservação pelos hóspedes. Em 2017, em decorrência do aumento da procura pelas permissões, a administração do parque reajustou o preço para 1,5 mil dólares por pessoa.

Independente dos aspectos financeiros, a conservação dos gorilas converteu-se em motivo de orgulho nacional em Ruanda. Assim, a restauração ecológica, adequadamente comunicada, não proporciona unicamente benefícios ecológicos e materiais, mas conecta o orgulho dos habitantes com a cultura nacional. No avião, ao retornar de Ruanda, Jiménez perguntava a si mesmo: “se um dos países mais pobres e densamente povoado do mundo está levando a sério a tarefa de produzir natureza em benefício de seus cidadãos, o que impede que outros países o façam, em circunstâncias ecológicas muito menos complicadas? O que impede que o mundo invista no conhecimento e nas ferramentas acumuladas nas últimas décadas para ampliar a área coberta por ecossistemas naturais para o benefício de nosso planeta e das comunidades rurais que vivem neles?”

Voltando o olhar para Itapoá, percebe-se uma alternativa semelhante. Ao contrário da África, não temos gorilas por aqui, somente alguns bugios nas florestas de encostas e macacos-prego na floresta da planície costeira. No entanto, temos uma admirável e diversificada avifauna, com mais 300 espécies de aves registradas, algumas endêmicas e raras, outras ameaçadas de extinção face a diminuição dos habitats florestais. Esse patrimônio ornitológico é reconhecido internacionalmente e faz de Itapoá referencial para observadores de aves que vem todos os anos para vê-las. Uma demanda turística latente e, infelizmente, pouco explorada. Tal qual a indagação de Jiménez, a pergunta: Por que não desenvolvemos até agora a observação de aves como opção para o turismo? Uma alternativa econômica não convencional importante para a conservação das nossas florestas.

¹ Ignácio Jiménez Pérez (Valencia, España, 1969) Biólogo e conservacionista com ampla experiencia internacional, participou de diversos projetos de conservação na Espanha, Costa Rica, África, Nicarágua, Argentina e Brasil. Seus trabalhos na área da conservação constam em livros, artigos científicos, periódicos e documentários. Colabora com organizações brasileiras na criação de áreas de produção de natureza na Mata Atlântica e Pantanal. Autor do livro “Produção de Natureza”, disponível em PDF no site da SPVS – Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental.

Itapoá (verão), Fevereiro de 2020.

Avatar

Werney

Werney Serafini é presidente da Adea – Associação de Defesa e Educação Ambiental. Acredita no desenvolvimento de Itapoá com a observância de critérios ambientalmente adequados.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Deixe seu comentário via Facebook